quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Adiamento



Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã... Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã, E assim será possível; mas hoje não... Não, hoje nada; hoje não posso. A persistência confusa da minha subjetividade objetiva, o sono da minha vida real, intercalado, o cansaço antecipado e infinito. Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico...  Esta espécie de alma...  Só depois de amanhã...

Hoje quero preparar-me, quero preparar-rne para pensar amanhã no dia seguinte... Ele é que é decisivo. Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos... Amanhã é o dia dos planos. Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o rnundo; Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã... Tenho vontade de chorar, tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro... Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo. Só depois de amanhã...

Quando era criança o circo de domingo divertia-rne toda a semana. Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância... Depois de amanhã serei outro, a minha vida triunfar-se-á, todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático serão convocadas por um edital... Mas por um edital de amanhã... hoje quero dormir, redigirei amanhã...

Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância? Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã, que depois de amanhã é que está bem o espetáculo... Antes, não... Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei. Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser. Só depois de amanhã... Tenho sono como o frio de um cão vadio. Tenho muito sono. Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã... Sim, talvez só depois de amanhã...

Fernando Pessoa

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