sábado, 5 de fevereiro de 2011

Invisível

O homem invisível


Eu rio-me
Sorrio-me
dos velhos poetas,
adoro toda a poesia escrita,
todo o orvalho,
lua, diamante, gota
de prata submersa,
que foi o meu antigo irmão,
incluindo a rosa,
mas sorrio-me
sempre que falam
dizem "eu",
sempre que algo
lhes acontece
é "eu" que dizem,
nas ruas só eles passam
ou a amada,
ninguém mais,
não passam pescadores,
nem livreiros,
nem pedreiros,
dos andaimes
ninguém cai,
ninguém sofre,
ninguém ama,
somente ao meu pobre irmão,
o poeta,
todas as coisas
lhe acontecem,
a ele e à sua amada,
ninguém existe
senão ele,
ninguém chora de fome
ou de raiva,
ninguém sofre nos seus versos
por não poder
pagar a renda da casa,
a ninguém em poesia
dão ordens de despejo
e nas fábricas
nada acontece,
nada se passa,
fazem-se guarda-chuvas, copos,
armas, locomotivas,
extraem-se minerais
escavando o inferno,
declara-se a greve,
vêm os soldados
e disparam,
disparam contra o povo,
quer dizer
contra a poesia,
e meu irmão
o poeta
estava apaixonado,
ou sofria,
porque os seus sentimentos
são marinhos,
ama os portos
longínquos, pelos seus nomes,
e escreve sobre oceanos
que não conhece,
junto à vida, repleta
como uma espiga de milho,
ele passa sem saber
como debulhá-la,
anda dum lado para o outro
sem tocar no chão,
ou sente-se às vezes
profundíssimo
e tenebroso,
é tão importante
que não cabe dentro de si,
enreda-se e desenreda-se,
declara-se maldito,
leva a cruz das trevas
a muito custo,
julga-se diferente
de toda a gente,
todos os dias come pão
mas nunca viu
um padeiro
ou entrou num sindicato
de padeiros,
e assim o meu pobre irmão
torna-se obscuro,
acha-se bizarro,
bizarro,
é a palavra,
eu não sou superior
ao meu irmão
mas sorrio-me,
quando ando pelas ruas
torno-me ignorado,
a vida corre
como todos os rios,
eu sou o único ser
invisível,
não há sombras misteriosas,
não há trevas,
toda a gente me fala,
me conta coisas,
falam-me das suas famílias,
das suas misérias
e das suas alegrias,
todos ao passarem
me dizem algo,
e as coisas que fazem!
cortam madeiras,
fazem ligações eléctricas,
amassam toda a noite
o pão de cada dia,
com uma lança de ferro
rasgam as entranhas
da terra
e transformam o ferro
em fechaduras,
sobem ao céu e levam
cartas, soluços, beijos,
em cada porta
há alguém,
a cada momento
alguém nasce,
ou me espera aquela que eu amo,
passo e as coisas
pedem-me que as cante,
o tempo não me sobra,
tenho de pensar em todas as coisas,
regressar a casa,
passar pelo Partido,
que hei-de eu fazer,
tudo me pede
que fale,
tudo me pede
que cante, cante sem parar,
tudo está repleto
de sonhos e de sons,
a vida é uma gaiola
cheia de cantos, abre-se
e uma bandada
de pássaros
voando
vem falar comigo,
pousa nos meus ombros,
a vida é uma batalha
igual a um rio que corre
e os homens
querem dizer-me,
querem dizer-te,
porque lutam,
se morrem,
porque morrem,
e eu passo e não tenho
tempo para tantas vidas,
eu quero
que todos vivam
na minha vida
e cantem no meu canto,
eu não tenho importância
nem tempo
para os meus assuntos,
de noite e de dia
tenho que apontar tudo o que se passa,
e não esquecer ninguém.
É certo que de repente
me canso,
fico a olhar as estrelas,
estendo-me na relva, passa
um insecto cor de violino,
pouso o braço
sobre um pequeno seio
ou enlaço a cintura
da minha amada,
e vejo o veludo
cruel
da noite que estremece
com as suas constelações geladas,
então
sinto subir à minha alma
a onda dos mistérios,
a infância,
o pranto dos recantos,
a adolescência triste,
e o sono invade-me,
durmo
como uma macieira,
fico adormecido
repentinamente
com as estrelas ou sem as estrelas,
com o meu amor ou sem ele,
e quando me levanto
já a noite se desvaneceu,
e a rua acordou antes de mim,
a caminho do trabalho
vão as raparigas pobres,
os pescadores voltam
do mar,
os mineiros
entram na mina
de sapatos novos,
tudo vive,
todos passam,
andam apressados,
e eu apenas tenho tempo
para me vestir,
para sair correndo:
ninguém pode
passar sem que eu saiba
para onde vai, ou que coisas
lhe aconteceram.
Não posso
viver sem o afã da vida,
sem o homem ser homem
e corro e vejo e ouço
e canto,
as estrelas não têm
nada a ver comigo,
a solidão não tem
flor nem fruto.
Dai-me todas as vidas
para a minha vida,
de todo o mundo
as suas dores,
e eu transformarei tudo
em esperança.
Dai-me todas as alegrias,
mesmo as mais secretas,
porque se assim não fosse,
como as saberíamos?
Eu tenho que as contar,
dai-me
a luta
de cada dia
porque elas são o meu canto,
e assim andaremos sempre juntos,
lado a lado,
todos os homens
reunidos no meu canto:
o canto do homem invisível
que canta com todos os homens.

in Odes Elementares

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